quinta-feira, 5 de maio de 2016

Jane Jacobs e a humanização da cidade


Jane Jacobs e a humanização da cidade, via Wikipedia
via Wikipedia

Celebra-se hoje o centenário de Jane Jacobs, genial urbanista e ativista social, conhecida por seu livro “Morte e vida das grandes cidades” (1961), que mudou definitivamente a forma de observar e analisar os fenômenos urbanos.
Jane Jacobs nasceu em 4 de maio de 1916 em um pequeno povoado da Pensilvânia, Estados Unidos, e na sua juventude emigrou para Nova Iorque, atraída pela vibrante e multitudinária vida urbana dessa mega cidade. Ali começou a interessar-se pelas questões urbanas, casou-se com um arquiteto, formou sua família em um singelo apartamento em Greenwich Village e consolidou sua vocação pelo jornalismo.
Sem ter diploma universitário ou estudos específicos, chegou a ser editora da revista Architectural Forum. Desde seus artigos polemizou duramente as tendências urbanísticas dominantes na década de 1950 na América do Norte, aquelas que propiciavam o crescimento dos subúrbios dispersos com casas individuais, o culto ao automóvel particular e as rodovias, junto com a desvalorização dos centros urbanos tradicionais, a preferência pelas torres e as demolições sistemáticas dos antigos edifícios e seus bairros em nome do progresso e modernização.
Inicialmente ridicularizada pelos tecnocratas do urbanismo moderno, ela nunca se deu por vencida, soube passar das ideias à ação e hoje é reivindicada, tendo sido citada até pelo presidente Obama. Jane Jacobs foi a primeira voz de resistência e participação cidadã ante os excessos de um urbanismo autoritário e desumanizado imposto de cima para baixo e que ainda hoje prefere as decisões fechadas, rápidas e sem consulta sobre as mudanças e obras que afetam a vida cotidiana de milhares de pessoas.
Em seu livro “Morte e vida das grandes cidades” (1961) resgata as ricas pré-existências da cidade multifuncional, compacta e densa onde a rua, o bairro e a comunidade são vitais na cultura urbana. “Manter a segurança da cidade é tarefa principal das ruas e das calçadas”. Para ela uma rua segura é a que propõe uma clara delimitação entre o espaço público e o privado, com gente e movimento constantes, quadras não tão grandes que conformem numerosas esquinas e cruzamentos de ruas; onde os edifícios tenham visão para as calçadas, para que muitos olhos a protejam. Ideias absolutamente inovadoras para sua época, como a mistura de usos, a densidade equilibrada, a proteção do patrimônio arquitetônico e urbano, a prioridade dos pedestres, as identidades dos bairros ou o cuidado ao projeto do espaço público são parte de um corpo doutrinário de enorme vigência.
Jacobs demonstra que antes de mudar uma cidade ou intervir nela é preciso conhecê-la a fundo, e isso implica entender onde está sua vitalidade, como os vizinhos a utilizam, o que apreciam nela, que atividades são realizadas nas ruas, como brincam as crianças, que parques são bons e por que são mais cheios que outros, quais são as boas dimensões e os porquês; em definitivo entendê-las e aprender a vivenciá-las. Para isso é preciso ir às ruas, falar com as pessoas, deduzir a maravilhosa teia de relações, vínculos e contatos que uma cidade cria entre seus habitantes. Seus textos são extraordinárias e minuciosas observações dessas relações e vivências.
Jacobs defende a densidade e a vida em comunidade, sustenta que ali está a cura da insegurança e a violência; conhecer o vizinho, criar redes, misturar-se com os diferentes, saudá-los, e voltar a sorrir no espaço público. Sua visão de mulher também será decisiva. Recuperar a vitalidade da rua é a chave de seus ensinamentos. A rua, diferente do que planeja Le Corbusier e o urbanismo moderno, não é um mero vazio para a mobilidade. A rua é para Jacobs uma autêntica e complexa instituição social onde desde crianças aprendemos a socializar e construir comunidade. Se a rua acaba por privilegiar o automóvel por sobre o pedestre, ela morre e inicia-se o fim da cidade.
Sua luta sistemática contra as prepotentes rodovias que surgem na cidade, arrasando-a, conseguiu salvar o belíssimo bairro de Village nos anos cinquenta, onde morava em Nova Iorque e depois Toronto, no Canadá, onde emigrou para evitar que seus filhos fossem alistados como soldados na Guerra do Vietnã. Lá faleceu em 2006, semanas antes de completar 90 anos. Em muitas cidades, nessa época do ano, diferentes ONGs convidam a homenageá-la realizando caminhadas urbanas para vivenciar e aprender a valorizar nossos entornos urbanos. Caminhar e desfrutar a cidade eram, talvez, suas maiores paixões.
Jane Jacobs foi uma teórica e uma ativista polêmica, muitas vezes tachada de ingênua em seus levantamentos urbanos. Mas hoje seus livros e ensinamentos ganharam uma importância renovada ante os fracassos do antigo planejamento tecnocrático, autoritário e arbitrário. O futuro da humanidade e do planeta depende de se ter cidades melhores. Sabemos que refugiarmos no espaço privado, ou o insustentável urbanismo difuso das periferias não é a solução e agrava o problema.
Nossa “qualidade de vida” não pode depender de guetos protegidos por muralhas, alarmes e exércitos privados. Por isso devemos voltar a olhar o espaço público como o coração da vida moderna; seu projeto, seu uso, sua gestão e novas funções. Repensar a rua, a praça, o parque, a arborização e a paisagem urbana, aquela que nos permita humanizar o espaço público e experimentar o encontro, o intercâmbio e a diferença. Por isso Jane Jacobs segue sendo uma referência inevitável, para pensar e também, fundamentalmente, tornar melhores as cidades.
Arq. Martín Marcos é Diretor do MARQ-SCA - Museo de Arquitectura y Diseño em Buenos Aires, Argentina e Prof. Titular FADU UBA

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