quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Frederico de Holanda 10 MANDAMENTOS





Arquitetura - a arte do espaço.
O conhecimento não para, o mundo se transforma, ideias são eternamente revisitáveis. Mormente em questões controversas.
Seria difícil, mas todos poderíamos viver sem assistir a um filme, apreciar uma pintura, escutar um concerto.
Todas as artes são aparentemente opcionais - e tristemente muitas pessoas ainda vivem sem poder delas desfrutar, como privilégio de sua humanidade. Mas nenhum de nós, em qualquer parte que seja, remota ou próxima do mundo, poderia viver sem a presença da arte da arquitetura.
O habitar humano não é puramente natural,
mas lugar construído, nem que seja um abrigo provisório de ramos para proteger da chuva tropical ou uns blocos de gelo arranjados em cúpula para se abrigar da neve polar.
Plantas e animais têm, cada qual, seu habitat,
o ser humano habita - e por isso pode engenhosamente produzir a condição para viver em qualquer parte, da Antártida ao Saara.

A arquitetura não se restringe à capacidade de se aplicar açodadamente um saber fazer técnico (e disso apenas extrair lucros): a arquitetura é isso, mas é também muito mais.
E é esse plus que sobeja que faz com que ela plenamente seja.

Em geral são os totalitarismos opressores que gostam de fazer tábula rasa do mundo e das gentes para instaurarem sua própria e exclusiva ordem: morro de medo desses tais que se creem nascidos do nada para inventar o tudo, porque ou são perigosamente ingênuos ou engenhosamente perigosos.

Ruth Verde Zein

1 - Veja na Arquitetura uma propriedade dos lugares.

definição de Lúcio Costa:
A mais tolhida das artes, a arquitetura é, antes de mais nada, construção, mas construção concebida com o propósito de organizar e ordenar plasticamente o espaço e os volumes decorrentes, em função de uma determinada época,
de um determinado meio,
de uma determinada técnica,
de um determinado programa
e de uma determinada intenção. (Arquitetura, p.7)

(...) o espaço da arquitetura como elemento primordial: os volumes são decorrentes da ordenação espacial, são meios para os fins que são os vãos, os vazios, os ocos dentro de onde estamos ou por onde nos movemos.
Isto é curioso, vai contra o senso comum, que vê, por exemplo, uma sala como o resultado de paredes, piso e teto, não a composição destes últimos como decorrência do tipo de ambiente que se quer criar na sala; ou o que vê o espaço de uma rua como resultado das casas lindeiras, não estas como meio para definir certa ambiência urbana (como faz a boa arquitetura, como Lucio Costa compões as superquadras de Brasília).

A arquitetura acontece quando certa qualidade é adicionada à "construção", agora pelos processos mentais envolvidos. Mas onde está a linha divisória entre reflexão consciente e reprodução inconsciente de padrões - o fazer "sabendo" e o saber "sem saber" o que se está fazendo? (27)

Deparamos com um paradoxo: edifícios produzidos com as mesmas ideias, num momento são arquitetura, noutros não, porque num momento foram produzidos com conhecimento "reflexivo", noutro foram feitos segundo uma reprodução "inconsciente" de padrões.

Quaisquer realizações humanas são providas de intencionalidade porque têm fenômenos mentais subjacentes que lhes dão origem - inclusive vontades, valores, teorias. Isso distingue realizações humanas de fenômenos físicos ou naturais.

Para Evaldo Coutinho, a essência da arquitetura é o espaço interno dos edifícios, embora ele admita que a arquitetura contém elementos-meio (paredes, piso, teto, próprios da linguagem volumétrica da escultura) e elementos-fim (vazios, ocos, vãos) - os elementos específicos da arquitetura como gênero artístico autônomo.
Juntos, constituem a forma-espaço da arquitetura.
Aqui, barreiras e permeabilidades, opacidades e transparências facultam condições especiais de luz e sombra, temperatura e movimento do ar, ruído e silêncio, aromas, a implicarem estados d´alma e possibilidades ou restrições de movimento aos nossos corpos. (28)

... a obra de arquitetura sempre propiciará, a quem entra convicto de que sabe de cor os vãos existentes, uma sensação de surpresa , tanto discordam a espacialidade interior e aquela de fora, recém-devassada por esse mesmo visitante.
Ainda nas construções em que as peças estão racionalmente repetidas, sente-se em cada célula algo de distinto das outras, um imponderável qualquer, talvez sobrevindo da posição, do recinto em si próprio como entidade intransferível e formadora do conceito de lugar. (30)

O mandamento sugere ampliar o conceito de arquitetura em cinco direções:
1) todos os edifícios são arquitetura, não apenas os que revelam certa "intenção" estética (contradizendo Lúcio Costa);
2) o espaço produzido por meio de um saber implícito, inconsciente, popular é tão legitimamente arquitetura quanto o produzido pelo saber explícito e reflexivo (contradizendo Bill Hillier);
3) o espaço externo de ruas e praças é arquitetura, não apenas o espaço interno das edificações (contradizendo Evaldo Coutinho);
4) todos os edifícios produzidos no âmbito de uma cultura são "dignos de teorização", constituem e reproduzem princípios e valores desta cultura (arché), os quais não se restrigem a contaminar prédios de características excepcionais (sim, eles existem), por quaisquer critérios que os definamos (contradizendo Carlos Brandão);
5) a paisagem virgem, natural, não transformada pelo homem tem uma configuração passível de análise e avaliação enquanto arquitetura, tanto quanto o espaço artificial de edifícios e cidades (contradizendo a generalizada ideia de que arquitetura conta apenas o que é construídos pelos humanos - o artefato). (40)

A arquitetura busca entender certo tipo de qualidade, não no sentido do "grau positivo de excelência, mas no sentido da "propriedade que determina a essência ou a natureza da coisa" (duas conotações que estão no Houaiss) - novamente, de certo ponto de vista.
A arquitetura olha o lugar e avalia e aprende com ele na medida da satisfação do nosso corpo e da nossa mente que o lugar faculta.
Corpo e mente esperam dos lugares a satisfação de expectativas de vários tipos: os lugares têm certos desempenhos em função de certos aspectos (Mandamento 3). (41)

2 - Pense as causas

A arquitetura insere-se num contexto socioambiental. Ela responde 1) a características do sítio natural: clima, relevo, geologia, hidrografia, disponibilidade de materiais de construção, e 2) ao contexto social: conhecimento científico-tecnológico, teorias e valores éticos e estéticos (sobre a boa e a bela arquitetura); interesses e correlatos poderes econômico-político-ideológicos. (45)

É a forma mais tradicional de refletir sobre a arquitetura:
explica-la pelo que a origina, por suas "determinações".
Estudar as causas e os efeitos da arquitetura pressupõe definir os elementos de sua linguagem, da mesma maneira que consideramos ritmos, tom e timbre, na música;
cor, na pintura;
imagem em movimento, no cinema etc.

Os atributos referem os elementos-meio da arquitetura (os "cheios") e os elementos-fins (os "vazios"), como ensina o mestre Evaldo Coutinho. Nos prédios, os cheios são piso, teto, paredes, colunas, quaisquer superfícies ou volumes opacos, transparentes ou translúcidos que definem os cômodos; na cidade, os cheios são prédios, fontes, monumentos, vegetação etc.; na paisagem, são elementos volumétricos como aflorações rochosas, relevo, novamente vegetação etc. (46)

Não há vazios sem cheios a defini-los,
não há o espaço de uma sala sem piso, paredes e teto.

Vazios - Elementos-fim da arquitetura.
Cômodos em um prédio (p.ex. sala, quarto, cozinha, numa casa); ruas, avenidas, esplanadas, praças, largos, parques, outras áreas livres, na cidade; espaços entre obstáculos, na paisagem natural.
Atributos dos vazios:
1) deles próprios: dimensões horizontais e verticais,
absolutas e relativas;
luz e sombra;
temperatura, umidade e movimento do ar;
aromas;
ruído e silêncio;
2) das relações com outros vazios no contexto a que pertencem:
direta ou indireta acessibilidade,
continuidade ou descontinuidade,
proximidade ou distância,
integração ou segregação,
envolvimento, hierarquia etc. (49)

Cheios - Elementos-meio da arquitetura.
No âmbito dos edifícios, os planos ou os elementos volumétricos que definem os vãos - piso, paredes, teto, colunas, superfícies ou volumes diversos. Atributos: cores, materiais, texturas, decoração; propriedades térmicas e acústicas; transparência, translucidez e opacidade.
No âmbito da paisagem construída da cidade: prédios que definem os espaços, suas formas, dimensões absolutas e relativas, relações entre as partes e o todo; elementos complementares na paisagem urbana; sinalização e elementos de propaganda (placas, letreiros, totens), pequenas construções (bancas de revistas, abrigos de ônibus, quiosques, coretos), mobiliário urbano ou "arte cívica" (bancas, lixeiras, telefones públicos, caixas de correios, postes, luminárias, cercas, hidras, fontes, esculturas), elementos de engenharia urbana (viadutos, passarelas, pontes, píeres); tipo das superfícies horizontais (calçadas, asfalto, areia, blocretes, água); vegetação (forrações, asbustiva, arbórea). No âmbito da paisagem natural: os cheios são os elementos tridimensionais resultantes do relevo, vegetação, aflorações rochosas, consideradas as características das superfícies que os definem - arenosas, argilosas, pétreas, pantanosas, aquáticas etc. (52)

Na cidade moderna as transições entre cheios e vazios
(o interior dos prédios e o espaço externo onde ocorre a vida pública)
também sofre alterações:
passamos de envoltórios de edifícios prenhes de portas e janelas
para superfícies cada vez mais fechadas e opacas.
Edifícios não dão rostos para o espaço público, dão ombros e costas (mandamento 9). (52)

Em diálogo com a artificialidade de ruas e prédios,
as montanhas, as praias,
a Lagoa Rodrigo de Freitas,
a baía de Guanabara
são parte indissociável da identidade da cidade do Rio de Janeiro. (55)

Relações vazios x cheios
Relações entre elementos-fim e elementos-meio
da arquitetura.
No interior dos prédios, forma e dimensões, absolutas e relativas, de planos, colunas ou outros lementos volumétricos, e a natureza das respectivas superfícies (sim, uma parede ou mesmo um painel de cristal são sólidos - cheios - a relacionarem-se com os vazios contíguos.)
Na cidade, relações mais ou menos diretas entre os volumes e os espaços que definem: volumes definindo os lugares públicos ou estratégias de separação, envolvendo recuos, jardins frontais, alambrados, passarelas, túneis, espelhos d´água, fossos. Percentual de cheios x vazios.
Frederico de Holanda
em
10 Mandamento da Arquitetura - 2013

Arquitetura - a arte do espaço.
O conhecimento não para, o mundo se transforma, ideias são eternamente revisitáveis. Mormente em questões controversas.
Seria difícil, mas todos poderíamos viver sem assistir a um filme, apreciar uma pintura, escutar um concerto.
Todas as artes são aparentemente opcionais - e tristemente muitas pessoas ainda vivem sem poder delas desfrutar, como privilégio de sua humanidade. Mas nenhum de nós, em qualquer parte que seja, remota ou próxima do mundo, poderia viver sem a presença da arte da arquitetura.
O habitar humano não é puramente natural,
mas lugar construído, nem que seja um abrigo provisório de ramos para proteger da chuva tropical ou uns blocos de gelo arranjados em cúpula para se abrigar da neve polar.
Plantas e animais têm, cada qual, seu habitat,
o ser humano habita - e por isso pode engenhosamente produzir a condição para viver em qualquer parte, da Antártida ao Saara.

A arquitetura não se restringe à capacidade de se aplicar açodadamente um saber fazer técnico (e disso apenas extrair lucros): a arquitetura é isso, mas é também muito mais.
E é esse plus que sobeja que faz com que ela plenamente seja.

Em geral são os totalitarismos opressores que gostam de fazer tábula rasa do mundo e das gentes para instaurarem sua própria e exclusiva ordem: morro de medo desses tais que se creem nascidos do nada para inventar o tudo, porque ou são perigosamente ingênuos ou engenhosamente perigosos.

Ruth Verde Zein

1 - Veja na Arquitetura uma propriedade dos lugares.

definição de Lúcio Costa:
A mais tolhida das artes, a arquitetura é, antes de mais nada, construção, mas construção concebida com o propósito de organizar e ordenar plasticamente o espaço e os volumes decorrentes, em função de uma determinada época,
de um determinado meio,
de uma determinada técnica,
de um determinado programa
e de uma determinada intenção. (Arquitetura, p.7)

(...) o espaço da arquitetura como elemento primordial: os volumes são decorrentes da ordenação espacial, são meios para os fins que são os vãos, os vazios, os ocos dentro de onde estamos ou por onde nos movemos.
Isto é curioso, vai contra o senso comum, que vê, por exemplo, uma sala como o resultado de paredes, piso e teto, não a composição destes últimos como decorrência do tipo de ambiente que se quer criar na sala; ou o que vê o espaço de uma rua como resultado das casas lindeiras, não estas como meio para definir certa ambiência urbana (como faz a boa arquitetura, como Lucio Costa compões as superquadras de Brasília).

A arquitetura acontece quando certa qualidade é adicionada à "construção", agora pelos processos mentais envolvidos. Mas onde está a linha divisória entre reflexão consciente e reprodução inconsciente de padrões - o fazer "sabendo" e o saber "sem saber" o que se está fazendo? (27)

Deparamos com um paradoxo: edifícios produzidos com as mesmas ideias, num momento são arquitetura, noutros não, porque num momento foram produzidos com conhecimento "reflexivo", noutro foram feitos segundo uma reprodução "inconsciente" de padrões.

Quaisquer realizações humanas são providas de intencionalidade porque têm fenômenos mentais subjacentes que lhes dão origem - inclusive vontades, valores, teorias. Isso distingue realizações humanas de fenômenos físicos ou naturais.

Para Evaldo Coutinho, a essência da arquitetura é o espaço interno dos edifícios, embora ele admita que a arquitetura contém elementos-meio (paredes, piso, teto, próprios da linguagem volumétrica da escultura) e elementos-fim (vazios, ocos, vãos) - os elementos específicos da arquitetura como gênero artístico autônomo.
Juntos, constituem a forma-espaço da arquitetura.
Aqui, barreiras e permeabilidades, opacidades e transparências facultam condições especiais de luz e sombra, temperatura e movimento do ar, ruído e silêncio, aromas, a implicarem estados d´alma e possibilidades ou restrições de movimento aos nossos corpos. (28)

... a obra de arquitetura sempre propiciará, a quem entra convicto de que sabe de cor os vãos existentes, uma sensação de surpresa , tanto discordam a espacialidade interior e aquela de fora, recém-devassada por esse mesmo visitante.
Ainda nas construções em que as peças estão racionalmente repetidas, sente-se em cada célula algo de distinto das outras, um imponderável qualquer, talvez sobrevindo da posição, do recinto em si próprio como entidade intransferível e formadora do conceito de lugar. (30)

O mandamento sugere ampliar o conceito de arquitetura em cinco direções:
1) todos os edifícios são arquitetura, não apenas os que revelam certa "intenção" estética (contradizendo Lúcio Costa);
2) o espaço produzido por meio de um saber implícito, inconsciente, popular é tão legitimamente arquitetura quanto o produzido pelo saber explícito e reflexivo (contradizendo Bill Hillier);
3) o espaço externo de ruas e praças é arquitetura, não apenas o espaço interno das edificações (contradizendo Evaldo Coutinho);
4) todos os edifícios produzidos no âmbito de uma cultura são "dignos de teorização", constituem e reproduzem princípios e valores desta cultura (arché), os quais não se restrigem a contaminar prédios de características excepcionais (sim, eles existem), por quaisquer critérios que os definamos (contradizendo Carlos Brandão);
5) a paisagem virgem, natural, não transformada pelo homem tem uma configuração passível de análise e avaliação enquanto arquitetura, tanto quanto o espaço artificial de edifícios e cidades (contradizendo a generalizada ideia de que arquitetura conta apenas o que é construídos pelos humanos - o artefato). (40)

A arquitetura busca entender certo tipo de qualidade, não no sentido do "grau positivo de excelência, mas no sentido da "propriedade que determina a essência ou a natureza da coisa" (duas conotações que estão no Houaiss) - novamente, de certo ponto de vista.
A arquitetura olha o lugar e avalia e aprende com ele na medida da satisfação do nosso corpo e da nossa mente que o lugar faculta.
Corpo e mente esperam dos lugares a satisfação de expectativas de vários tipos: os lugares têm certos desempenhos em função de certos aspectos (Mandamento 3). (41)

2 - Pense as causas

A arquitetura insere-se num contexto socioambiental. Ela responde 1) a características do sítio natural: clima, relevo, geologia, hidrografia, disponibilidade de materiais de construção, e 2) ao contexto social: conhecimento científico-tecnológico, teorias e valores éticos e estéticos (sobre a boa e a bela arquitetura); interesses e correlatos poderes econômico-político-ideológicos. (45)

É a forma mais tradicional de refletir sobre a arquitetura:
explica-la pelo que a origina, por suas "determinações".
Estudar as causas e os efeitos da arquitetura pressupõe definir os elementos de sua linguagem, da mesma maneira que consideramos ritmos, tom e timbre, na música;
cor, na pintura;
imagem em movimento, no cinema etc.

Os atributos referem os elementos-meio da arquitetura (os "cheios") e os elementos-fins (os "vazios"), como ensina o mestre Evaldo Coutinho. Nos prédios, os cheios são piso, teto, paredes, colunas, quaisquer superfícies ou volumes opacos, transparentes ou translúcidos que definem os cômodos; na cidade, os cheios são prédios, fontes, monumentos, vegetação etc.; na paisagem, são elementos volumétricos como aflorações rochosas, relevo, novamente vegetação etc. (46)

Não há vazios sem cheios a defini-los,
não há o espaço de uma sala sem piso, paredes e teto.

Vazios - Elementos-fim da arquitetura.
Cômodos em um prédio (p.ex. sala, quarto, cozinha, numa casa); ruas, avenidas, esplanadas, praças, largos, parques, outras áreas livres, na cidade; espaços entre obstáculos, na paisagem natural.
Atributos dos vazios:
1) deles próprios: dimensões horizontais e verticais,
absolutas e relativas;
luz e sombra;
temperatura, umidade e movimento do ar;
aromas;
ruído e silêncio;
2) das relações com outros vazios no contexto a que pertencem:
direta ou indireta acessibilidade,
continuidade ou descontinuidade,
proximidade ou distância,
integração ou segregação,
envolvimento, hierarquia etc. (49)

Cheios - Elementos-meio da arquitetura.
No âmbito dos edifícios, os planos ou os elementos volumétricos que definem os vãos - piso, paredes, teto, colunas, superfícies ou volumes diversos. Atributos: cores, materiais, texturas, decoração; propriedades térmicas e acústicas; transparência, translucidez e opacidade.
No âmbito da paisagem construída da cidade: prédios que definem os espaços, suas formas, dimensões absolutas e relativas, relações entre as partes e o todo; elementos complementares na paisagem urbana; sinalização e elementos de propaganda (placas, letreiros, totens), pequenas construções (bancas de revistas, abrigos de ônibus, quiosques, coretos), mobiliário urbano ou "arte cívica" (bancas, lixeiras, telefones públicos, caixas de correios, postes, luminárias, cercas, hidras, fontes, esculturas), elementos de engenharia urbana (viadutos, passarelas, pontes, píeres); tipo das superfícies horizontais (calçadas, asfalto, areia, blocretes, água); vegetação (forrações, asbustiva, arbórea). No âmbito da paisagem natural: os cheios são os elementos tridimensionais resultantes do relevo, vegetação, aflorações rochosas, consideradas as características das superfícies que os definem - arenosas, argilosas, pétreas, pantanosas, aquáticas etc. (52)

Na cidade moderna as transições entre cheios e vazios
(o interior dos prédios e o espaço externo onde ocorre a vida pública)
também sofre alterações:
passamos de envoltórios de edifícios prenhes de portas e janelas
para superfícies cada vez mais fechadas e opacas.
Edifícios não dão rostos para o espaço público, dão ombros e costas (mandamento 9). (52)

Em diálogo com a artificialidade de ruas e prédios,
as montanhas, as praias,
a Lagoa Rodrigo de Freitas,
a baía de Guanabara
são parte indissociável da identidade da cidade do Rio de Janeiro. (55)

Relações vazios x cheios
Relações entre elementos-fim e elementos-meio
da arquitetura.
No interior dos prédios, forma e dimensões, absolutas e relativas, de planos, colunas ou outros lementos volumétricos, e a natureza das respectivas superfícies (sim, uma parede ou mesmo um painel de cristal são sólidos - cheios - a relacionarem-se com os vazios contíguos.)
Na cidade, relações mais ou menos diretas entre os volumes e os espaços que definem: volumes definindo os lugares públicos ou estratégias de separação, envolvendo recuos, jardins frontais, alambrados, passarelas, túneis, espelhos d´água, fossos. Percentual de cheios x vazios.
Frederico de Holanda
em
10 Mandamento da Arquitetura - 2013

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Resenha por Edja Trigueiro


Acrescenta uma contribuição mais que bem-vinda ao conhecimento da arquitetura, esta desconhecida no Brasil, como bem lembra Ruth Verde Zein, no prefácio do livro. Aplauso pelo esforço e coragem de discutir etiquetas epistemológicas tidas como herméticas (não de todo gratuitamente), em uma escrita acessível para iniciantes e mesmo não iniciados nos meandros da academia, sem reduzi-las a conceitos estanques, explorando proposições em perspectiva historiográfica e delineando contornos entre fato e intenção, sintaxe e semântica. Situando a arquitetura como campo de interesses sociais conflitantes, em sentido lato, escapa à equívoca fragmentação conceitual do nosso campo disciplinar (tão valorizada nestes tempos de paixão por rótulos), sem evitar expor posicionamentos ideológicos, inclusive os seus próprios. Aplauso, também, pela postura ética, ao creditar filiações, contribuições (até as mais ligeiras) e inspirações, como a da mestra Julienne Hanson, maga no decifrar de relações socioespaciais e no bem escrever, a quem o livro é dedicado, seguindo o mote de um dos seus escritos – The ten commandments (for writing academic papers) – traduzido e anexado ao livro. Obra sazonada, fruto de saberes bebidos nos campos da filosofia, sociologia, linguística, história, antropologia, etnografia, da física até, mas cingidos por contornos próprios da arquitetura, principalmente quanto ao modo como relações entre cheios e vazios do mundo real – construído ou natural – associam-se a expressões próprias desses campos de conhecimento. Tais associações, além da grande serventia que têm no plano didático, sustentam visões por vezes nada ortodoxas, abarcando um registro que vai da reflexão sobre paradigmas habilmente apresentados pelo Holanda acadêmico e proposições transgressoras próprias do Holanda polemista.
Diatribes que percorreram a trajetória acadêmica desta resenhista (e da professora que nasceu comigo) e continuam a ser discutidas, dialogam com visões contemporâneas filtradas por muitas lentes, algumas capazes de expor particularmente bem, distorções entre a doutrina e o real. No capitulo introdutório, que trata do primeiro mandamento – Veja na arquitetura uma propriedade dos lugares – Holanda discute definições de arquitetura, apontando inconsistências, mesmo em seus autores-guia, ampliando e recortando sentidos para incluir todo o ambiente – construído e natural – desde que percebido por um olhar disciplinado, focado na medida de satisfação de nosso corpo e de nossa mente. A proposição de que o ambiente natural também pode ser entendido como arquitetura e de que toda construção é arquitetura, oferece pano para muitas mangas de discussão em sala de aula e alhures, ainda que pareça espantoso haver quem defenda ser possível traçar fronteiras entre edifícios que se qualificam e edifícios que não se qualificam como arquitetura, e mais espantoso que o façam com base em valoração estética (de quem? para quem? quando?). Existiriam artefatos cuja fatura tenha ocorrido isenta de decisões do tipo assim fica melhor? Passadas não menos de quatro décadas, desde que pela primeira vez me deparei com essa discussão, vejo-a retomada, felizmente, em perspectiva diacrônica, objetiva e morfológica. Outras questões abordadas ao longo do texto tangenciam o debate, como, por exemplo, a referência a mutações do sentido de “estético” com relação à dicotomia valor de uso / valor de troca, por Raymond Williams, e sobre precedência ou originalidade (novidade diria eu) como critério de valor, por Antonio Cicero.
Nestes tempos em que a razão de ser do professor não é trazer informação para a sala de aula (que os alunos fazem isso, em grandes partidas com seus i-pads, i-phones, e que-tais), mas buscar orientar arquitetos/acadêmicos em construção no sentido de conceber um mundo que acreditamos melhor, os temas abordados nos mandamentos 2 e 3 – Pense as causas e Pense os efeitos – são seminais para entender o alcance da forma da arquitetura, tanto como repositório e reflexo, quanto como mecanismo gerador de processos socioespaciais, direta e indiretamente relacionados ao seu potencial de facilitar, dificultar ou impedir movimento e visibilidade. Referências e exemplos ancoram o axioma da arquitetura como força atuante na sociedade, que, mediante a interação entre elementos-meio (os cheios) e elementos-fim (os vazios), delineia estruturas mais ou menos rígidas, mais ou menos previsíveis, mais ou menos controláveis, capazes de permitir ou coibir padrões distintos de encontros e esquivanças que estão na raiz de modos distintos de solidariedade. Em escritos anteriores Holanda (2003) polarizou tais estruturas nos conceitos de formalidade e urbanidade, que vêm sendo utilíssimos para nortear estudos sobre relações arquitetura-sociedade, e para instigar o debate sobre natureza, variantes, caminhos e descaminhos do que possa ser considerado o ser e o agir de modo "urbano", aberto à livre manifestação e negociação de diferenças. N’Os 10 mandamentos, esses conceitos subjazem quase toda a argumentação e são diretamente abordados nos capítulos finais, na perspectiva de conteúdos sintáticos, semânticos e éticos.
Os três capítulos (mandamentos) iniciais seriam já suficientes para sustentar uma obra de referência sobre fundamentos da arquitetura, mas, fiel ao mote inspirador dos 10 mandamentos, e aproveitando para dar vazão a saberes e inquietações muitas, nos demais capítulos Fred fecha o foco em um ou outro tema na raiz das causas e efeitos da relação arquitetura/sociedade, trazendo referências e exemplos complementares, tudo belamente ilustrado. Felizmente, em meu entender, porque aí se manifesta, com mais transparência, o Holanda mestre. Embora recomendando iniciar a leitura na sequência Apresentação, Prefácio, capítulos 1, 2, 3, penso que a partir do quarto capítulo qualquer esquema de leitura é igualmente adequado. Daí que agora passo a mencionar os mandamentos seguindo a trilha das ideias.
Retomando o axioma da forma atuante, o quarto mandamento reza que se Entenda a arquitetura como possibilidades e restrições delineadas pela estrutura de cheios e vazios. Nesse contexto, a velhíssima questão do determinismo arquitetônico é situada entre o sonho demiúrgico de uma nova arquitetura capaz de engendrar uma nova sociedade, dos pioneiros do Movimento Moderno, e a visão de arquitetura como artefato nem autoritário nem democrático, mas apenas suporte de meios autoritários ou democráticos de produzi-la e usá-la, conforme Tafuri, Rossi e Krier. Esta proposição que subentende a crença em uma arquitetura “neutra” em termos sociopolíticos, nega a evidente possibilidade de se decifrar na, e a partir da arquitetura, nexos sobre modos de vida e práticas sociais, mesmo acontecidas há séculos (como morfólogos têm feito desde há muito). Holanda a refuta, com base em farta evidência empírica, da qual destaco, um dos exemplos elencados pelo autor no Plano Piloto: os Setores Comerciais.
Os Setores Comerciais Sul e Norte diferem quanto ao nível de resistência que suas estruturas espaciais oferecem a apropriações dos espaços públicos por grupos sociais distintos. Enquanto no SCS, maior acessibilidade e transporte público possibilitam diversidade de usos e presenças, de modo que "forças da ordem" precisam estar em "estado de alerta" contra atos de subversão – i.é. comércio informal de ambulantes – no SCN "o urbanismo poupa o trabalho", desfavorecendo a mistura de classes, um vez que "trabalhadores manuais são limitados à demanda das firmas localizadas nos espaços internos", agravando, como pontua Holanda, o que o urbanismo moderno tinha de pior. A menção dessa estrutura “que auxilia as forças da ordem” evocou uma experiência que tivemos, a professora Sonia Marques e eu, quando teimamos em ir do nosso hotel a um restaurante do SCS a pé. Conseguimos ir, após muitas e muitas mudanças de direção, e tempos infinitos aguardando semáforos que abriam e fechavam antes que chegássemos ao outro lado da via. Na volta decidimos observar o movimento de pessoas que pareciam estar retornando ao trabalho e o percurso pareceu mais fácil. Passamos diante de algumas paradas de ônibus e nos beneficiamos de faixas de pedestres. Atravessada a última, já quase cantando vitória, nos descobrimos na lavanderia do hotel vizinho (e mesmo vizinho renegociar o caminho para o nosso foi outro martírio). O trajeto de pedestres levava das paradas de ônibus às áreas de serviço dos hotéis, traindo uma ordem cujo desígnio parece ser a de conduzir pedestres – no caso, os usuários “naturais” de transportes públicos – direto aos seus prováveis postos de trabalho.
Transgressões à ordem subjacente à estrutura espacial, também são discutidas no quinto mandamento: Leia na arquitetura igualdades e desigualdades sociais. O surgimento de quiosques, lanchonetes, lotéricas, bancas de revista, ambulantes e panfleteiros que compensam o isolamento e a aridez das empenas cegas dos blocos dos ministérios; a animação da Rodoviária e da antiga feirinha da torre de TV, depois deslocada para sítio menos favorável, são alguns dos exemplos citados como manobras criadas para contornar efeitos de tipos de configuração espacial que levam à apartação de gentes, fenômenos e tempos. Sugestões de reconfiguração, como nos casos da W3 ou do Eixo Rodoviário – o chamado “eixão da morte” – para o qual Holanda e colaboradores recomendam semáforos e canteiro central calçado e florido remetem a avenidas de cidades europeias como a Liberdade, em Lisboa, onde um comprido espaço linear flanqueado pelas pistas de rolamento alberga cafés, jardins, playgrounds e gente que passa e fica. Que inveja!!!! A recomendação Cuide a ordem sem descuidar a desordem – 7º mandamento – retoma essa linha de discussão, mediante a abordagem de fissuras na ordem dominante, como expressões de ações e trajetórias que dão resposta a necessidades negligenciadas por um modo de planejamento excludente, muitas vezes (mal) entendidas e equivocamente consideradas como falta de planejamento.
Filiações teóricas tornam-se mais explicitas no capítulo dedicado a recomendar que se Considere a sintaxe e a semântica (6º mandamento), outro presente para professores que lidam com morfologia da arquitetura, sobretudo nós, os “sintaqueiros”, à cata de meios e modos de transmitir o corpo teórico-metodológico da Sintaxe do Espaço. Ainda que não seja bicho de sete cabeças desmistificar falsas alegações de hermetismo que envolvem a metodologia quando se tem tempo para exposição e discussão, como em um curso ou workshop, são raros os alunos que nos chegam com algum conhecimento prévio, em parte pelo ranço acadêmico e sisudez da maior parte da literatura disponível. Nessa medida, a linguagem d’Os 10 Mandamentos, permeada pelos princípios da Teoria da Lógica Social do Espaço, mas sem carregar no jargão ou nas filigranas dos instrumentos analíticos, amplia as probabilidades de leitores virarem novos morfólogos, sobretudo dentre os que creem ser o espaço, ao mesmo tempo, função de práticas sociais e meio de viabilizá-los e reproduzi-los; e que se dispõem a refletir sobre arquitetura como espaço percebido e sociedade como sistema de encontros.
No capítulo 8, cujo lema é Atente à história, os conceitos formalidade e urbanidade são retomados em perspectiva diacrônica, de modo a estabelecer associações entre modos afins de configuração espacial surgidos com séculos de afastamento, mas servindo a propósitos socioculturais também afins. “As versões dos atributos mudam no tempo, mas se rasparmos a superfície do fenômeno (quase pleonasmo pois fenômeno implica aparência) vemos parentescos insuspeitados” (Grifos de Holanda). Empenhado também em advertir que por trás das “superfícies dos fenômenos” esconde-se, mais das vezes, o conhecimento objetivo, no qual é preciso focar porque sem esse “conhecimento de muito longo prazo somos presas fáceis da ideologia dominante”, o autor dedica seu 10º mandamento – Foque o conhecimento objetivo – a explorar modos de pensar e produzir conhecimento. Sem medo de soar mestre-escola define noções fundamentais como teoria (os pontos de partida para a discussão de fatos), método (o conjunto de procedimentos para viabilizar a análise de um problema) e técnicas (os meios investigativos), facilitando, mais uma vez, a vida de professores, sobretudo os que ministram cursos a iniciantes de pós-graduação em arquitetura, muitos destes profissionais há anos afastados da academia.
Projete a cidade sem ombros ou costas – só rostos, manda o capítulo 9, como ato de resistência à erosão do espaço designado para o desenrolar da vida urbana. A obviedade da ideia faz a proposição parecer pueril, não fosse a realidade de cidades com quadras e edifícios mais e mais de costas para o espaço público, espaços públicos e privados mais e mais reféns da violência, nossas cidades mais e mais distantes dos padrões de urbanidade que testemunhamos em outras tantas, inclusive da América do Sul.
Na apresentação, Frederico de Holanda lamenta não ter tido o tempo necessário para sintetizar o conteúdo do livro para um tamanho compatível com o das coleções tipo “primeiros passos”, “uma introdução a ...” etc. Talvez tenha sido uma benção em disfarce, com perdão do anglicismo. Teria perdido um recheio de exemplos, analogias, narrativas, recorrências até, que oferecem uma multiplicidade de motes e associações e fazem do texto – ao contrário do que pode acontecer em boas obras muito condensadas (e do que se costuma pensar) – mais rico e mais acessível. Um presente para mestres e discípulos em distintos estágios de formação, mesmo os bem verdes.

Eixo Rodoviário, Brasília, num domingo comum

Foto Frederico de Holanda
sobre a autora
Edja Trigueiro é professora na graduação e pós-graduação em arquitetura da UFRN, tendo recebido formação acadêmica na UFPE e na University of London. Estuda relações entre forma e práticas socioculturais. 

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