BELEZA PEREGRINA
Beleza peregrina costura fronteiras: entre lugares; entre passado e presente; entre ficar e passar; entre dor e esperança. Aliando a introspecção autobiográfica e a panorâmica do viajante, Valério de Medeiros alterna alumbramentos/desapontamentos do menino aprendiz e argúcias do analista mestre, ao percorrer continentes, primeiro de dentro de uma rede – “balão enorme em volta do mundo” – pendurada entre a goiabeira e o pé de pinha do quintal de casa, depois em aviões, bondes, vaporettos, a pé.
Articulando metáforas e descrições, conduz o leitor através de sensações ora envoltas em representações subjetivas, ora nitidamente ancoradas no objeto observado, sob o rigor do olhar do estudioso de lugares – paisagens, cidades, casas e os que nelas estão.
Beleza peregrina é um livro de crônicas de viagem; mas é muito também sobre memória – a memória de Valério e a de outros, ainda por aqui ou que já não são. Uma atmosfera junta os textos como membros de uma família: certa melancolia diante da vida, uma indagação sobre o estar no mundo que a memória e o tempo facultam; memória a remeter a outras memórias, outras vidas que, à Evaldo Coutinho, fizeram os lugares agora feitos por Valério. Há um registro de leituras a pontuarem as crônicas – leituras que, lá atrás, junto com mapas, despertaram o menino curioso para lugares do mundo e o fizeram percorrê- los. E, em os encontrando, encontrar a si próprio, o de ontem e o de hoje.
Frederico de Holanda
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(Apresentação) Beleza peregrina
São Paulo, 11 de março de 2016
Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus […]. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. Clarice Lispector1 Brasília despojada e lunar como a alma de um poeta muito jovem Nítida como a Babilônia Esguia como um fuste de palmeira Sobre a lisa página do planalto A arquitectura escreveu a sua própria paisagem Sophia de Mello2 Não faz muito tempo, numa amena tarde em Brasília, eu mergulhava em papéis e processos no trabalho. Vez por outra, quando atingia um estado extremo de exaustão, reparava pela janela o panorama prodigioso da cidade. A torre na Praça dos Três Poderes, admirável, era o meu miradouro. Beirava os 100 metros de altura e sobressaía por todos os quadrantes do Cerrado modernista. De minha cadeira eu conseguia enxergar parte expressiva do Plano Piloto para o sul: as zonas de expansão de autarquias, o setor de embaixadas, o Lago Sul, aviões miúdos em procedimentos de pouso e decolagem no aeroporto Juscelino Kubitschek. Em grande parte do ano, os prédios pareciam miniaturas soltas sobre gramados verdes e vastos, escorrendo rumo às margens do Lago Paranoá. No crepúsculo, eu apreciava com indisfarçável prazer o céu riscado por nuvens e derramado de amarelos, laranjas e vermelhos efêmeros. Ver os campos abertos da capital era um alento, especialmente nas temporadas de fadiga. Aquela tarde era um desses dias. Prossegui o serviço, avançando em análises e desenhos por concluir. Já não conseguia raciocinar muito bem, mas insistia apesar do cansaço. Acabei, tempo depois, verificando os e-mails. Entre propagandas, respostas burocráticas e notícias, uma mensagem particular: “Estou lendo a autobiografia de Darcy Ribeiro e, ao falar dos índios, refere-se à ‘beleza peregrina’ já apreciada pelos portugueses. O que será ‘beleza peregrina’? Queria ter trazido o livro para te mostrar, mas esqueci-me. Trarei amanhã sem falta”3 . Não, eu não conhecia a expressão. Fiquei intrigado. *** Beleza provém do latim “bellitas” e compreende o “estado de ser belo”, aludindo a “bonito, bem-apessoado, encantador” 4 . “Bellus”5 associa-se à ideia de “elevado, sublime”, incorporando o sentido de “bom e generoso”6 . Na filosofia, a palavra assume a “manifestação do bem ou do verdadeiro”, também legível enquanto “simetria, perfeição sensível e perfeição expressiva”7 . O verbete incorpora a acepção de “inesperado”, o que remete a “surpreendente” ou “extemporâneo”8 . O termo peregrino9 é oriundo de “per agri”, “peregrinationis”, “pelos campos”, com significado de “longa viagem”. O peregrino é o “viajante”, a implicar o transcurso de trajetos extensos e árduos. Peregrinar passou a traduzir a ideia de “viajar ou andar por terras distantes”, remetendo à leitura do “estranhamento”. Se a princípio compreendia jornadas a países estrangeiros, após o Cristianismo incorporou a motivação religiosa, apontando para locais de devoção. A combinação das palavras em “beleza peregrina” daria conta de algo raro, excepcional, extraordinário ou excelente. Haveria uma “beleza peregrina” ou um “talento peregrino”, por exemplo. É a beleza diferente ao fornecer uma perspectiva nova capaz de desconstruir referências ou desconcertar, por ser insólita10 . Procurando entender melhor a expressão, deparei-me com a crônica “A nenhuma chamarás Aldebarã”, escrita em 1953 por Rubem Braga: “(...) E se amanhã, na tua inquieta fantasia, quiseres dar esse nome a algo que ames, podes dá-lo sem remorso à égua fidalga que no galope deixa que o luar lhe beije as negras crinas, ou à mais bela flor no pélago marinho; e até podes chamar Aldebarã a uma nuvem que se doira no momento em que o céu, para o ocidente, já toma a cor da triste violeta; mas promete que nunca darás esse nome, nunca, a nenhuma filha dos homens, por mais ansioso te faça a sua beleza peregrina./Eu disse apenas, humilde: "Prometo”. E então pela primeira vez em muitos e muitos anos de longas noites, eu pude adormecer sorrindo, porque meu coração era puro como o de um menino”11 . Jorge Amado, no livro Tocaia Grande12, narrou-a entre estupor e devoção: “(...) Das alturas do selim sobre o burro Mansidão, dona Isabel contemplou a tal sicrana que viera das estranjas trazida pelo filho do falecido coronel Boaventura, saudoso amigo. Não pôde negar-lhe a beleza peregrina, parecia uma estampa da Virgem Maria na fuga para o Egito, modesta e pura”. Em outro romance, prenunciava a sedução feminina: “(...) – Se chama Tereza Batista, beleza peregrina, meu caro. Melhor ainda de briga do que de escrita”13 . Darcy Ribeiro, em Confissões 14, descreveu seu fascínio e encantamento pelos índios – era esse o texto da mensagem que recebi – o que lhe despertou uma “curiosidade inesgotável”: “Desde então, até hoje, me pergunto o como e o porquê dos seus modos tão extraordinários de serem tal qual são. Repensando agora, tantos anos depois, aquelas vivências minhas, ressaltam certas características distintivas dos índios, visíveis ao primeiro contato, que desencadearam aquele meu encantamento e essa longa arguição./ A fascinação que aqui confesso não é, aliás, nenhuma novidade. Já os primeiros europeus que depararam com nossos índios nas praias de 1500 se encantaram com a peregrina beleza de seus corpos e a gentileza de seus modos. Qualquer civilizado que conviveu com uma tribo isolada carrega, pela vida afora, a lembrança gratíssima do sentimento de espanto e simpatia que eles suscitam”. *** Lisboa estava lá e cercava-nos, era impossível não a olhar, não tropeçar nela a cada passo. Era o chão que pisávamos, um lugar que nos pertencia, porque era nele que nos tínhamos encontrado e nos amávamos. Mas no fundo não era Lisboa que procurávamos, era um ao outro e a nós mesmos que procurávamos em Lisboa. Éramos viajantes, e é para si próprios que os viajantes caminham. Querem saber quem são e onde moram. E, como escreveu Novalis, vamos sempre finalmente para casa. O modo como olhávamos a cidade tinha a ver conosco e com a nossa história. Desde logo porque o ponto de vista éramos nós.
Existem lugares que me afetam. Outros, embora bonitos, não me comovem. Convençome ano após ano que o prazer pelos destinos não resulta de sua beleza, ordem ou planejamento. O arrebatamento está nos horizontes ou nas pessoas que, pela exceção ou diferença, desconstroem minhas realidades internas. Não sou ninguém sem o outro. Esse livro descreve minhas experiências com a beleza peregrina. Podem não ser as mesmas para o leitor. Em cada um desses locais, contudo, houve algum cheiro, indivíduo ou cenário excepcional a me fazer olhar para dentro, alimentando-me. Eu não me iludo. Viajantes sempre enxergam metades ou versões. Quando atravessamos caravanas nas longas jornadas pelos desertos ou pilotamos sobre oceanos e montanhas, encontramos apenas vivências particulares. Desconfio sempre da verdade. Primeiro, porque há várias. Segundo, porque o olhar é repleto de filtros e memórias individuais16. Terceiro, porque existe o tempo, transformador não somente das paisagens, mas dos olhos que observam. Eu não era o mesmo em cada uma das histórias a lhes contar adiante. Fui muitos. E ainda espero ser outro tanto no tempo que ainda me restar. Eu era uma criança ingênua dos subúrbios de uma cidade descrita como provinciana e distante. Até uns 10 ou 11 anos eu brincava na rua, às vezes descalço, atravessando dunas e terrenos baldios ao sul de Natal. Eu jogava biloca, construía engenhos com fogos de artifícios, juntava peixes da lagoa sazonal próxima para fazer meu próprio aquário – mas como eu colocava as piabas num vidro transbordante de “água de torneira”, todas morriam em um dia ou dois. Tive cachorros de rua, pintos coloridos comprados na Feira do Alecrim por meu pai, periquitos australianos, galinhas trazidas do sítio dos meus avós maternos para crescer, deitar os ovos e formar novas gerações alternadas nas cantorias pelas manhãs. Eu adotava filhotes de gatos vira-latas achados nas redondezas, mas não era exatamente um bom cuidador devido ao excesso de zelo. Alguns findavam mofinos... Eu gostava de aguar as plantas do jardim de minha mãe, subir na goiabeira escorregadia e cobiçar as carambolas tenras que pendiam altas da árvore da vizinha, torcendo para caírem logo. No quintal da casa onde hoje ainda moram meus pais, eu construía cidades com tacos velhos, garrafas vazias e tampas órfãs de embalagens perdidas. Sempre cercadas por muros de areia, cada peça que eu enfiava na terra convertia-se num edifício alto emergente em meu urbanismo convicto. Terminada a cidade, a mangueira ligada fazia às vezes de dilúvio ou arrebentação, devolvendo tudo ao pó e à lama, para eu refazer no outro dia.
Encantado no universo que erguia para mim, alumbrava-me com pouca coisa, perdido numa rede em que eu lia horas a fio, à sombra da goiabeira e do pé de pinha. Os armadores apoiavam-se nas paredes do muro, rangendo num ir-e-vir contínuo. Não era incomum eu adormecer embalado pelas aventuras dos livros descobertos nas bibliotecas do colégio ou de casa. Eu me perdia em cidades fantásticas e ilhas secretas, junto aos piratas e marinheiros. Ou apenas pairava estupefato naquele balão enorme em volta do mundo. Na ingenuidade dos anos, eu desconhecia a crueza da vida. Ignorava o peso das marcas no corpo, o dinheiro escasso, as crises políticas e econômicas que assolavam o país. O Brasil áspero, hesitante e em construção, redemocratizando-se, varria a realidade cotidiana. Sem os brinquedos caros da televisão ou as viagens que alguns dos amigos de escola faziam, perdia-me nas páginas de um atlas largo pelo qual nutria singela afeição. A capa negra com um globo ilustrado abria as fronteiras iniciadas na rede sonolenta em Natal. Esse livro, meu caro leitor, talvez tenha sido escrito para me libertar da ingenuidade daquela fase. Quando escrevo, deixo primeiro as palavras correrem livres, porque assim elas vão pelos campos, alongando-se nas jornadas e travessias. Depois de dias ou anos, espero se assentarem, até que restem apenas as capazes de se admirar tanto quanto eu com a beleza peregrina que um dia eu vi. Sei correr, entretanto, um grande risco. Talvez eu perceba, embora adulto e beirando os 37 anos, que permaneço ingênuo. Alheio às verdades por onde andei, acreditando numa beleza peregrina existente somente para mim. A certeza terei apenas se compartilhar. O livro já não é mais meu.
Valério de Medeiros
1 LISPECTOR, Clarice. Brasília: 1962. In: ANDRADE, Carlos Drummond de et al. Elenco de cronistas modernos. 25. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013, p. 122.
2 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética. 2. ed. Alfragide: Caminho, 2011, p. 516 (excerto do poema “Brasília”).
3 O e-mail é de Raquel Giacomoni Osório e foi enviado em 15 de julho de 2013, às 16h48min.
4 BELEZA. In: ORIGEM da palavra – site de etimologia. Disponível em: < http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/beleza/ >. Acesso em: 08 abr. 2016.
5 BELLUS. In: SARAIVA, F. R: dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. 10. ed. Belo Horizonte: Garnier, 2006, p. 144.
6 BELO. In: CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 104-105. 7 BELO. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia.
5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 120. 8 BELO. In: DICIONÁRIO Houaiss Sinônimos e Antônimos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 97.
9 As definições para “peregrino” derivam de: a) PEREGRINO. In: CUNHA, Antônio. Dicionário etimológico Nova Fronteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 595; b) PEREGRINAÇÃO. In: SILVA, Deonísio. De onde vêm as palavras. Osasco: Novo Século, 2009, p. 784; c) PEREGRINAÇÃO. In: ORIGEM da palavra – site de etimologia. Disponível em: < http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/peregrinacao/ >. Acesso em: 8 abr. 2016; d) PEREGRINO. In: DICIONÁRIO Houaiss Sinônimos e Antônimos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 507; e) PEREGRINUS. In: SARAIVA, F. R: dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. 10. ed. Belo Horizonte: Garnier, 2006, p. 869.
10 “Um rosto de beleza peregrina” é a frase usada como referência para ilustrar os sentidos de “raro, singular ou único”, em: PEREGRINO. In: DICIONÁRIO Houaiss Sinônimos e Antônimos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 507.
11 BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2013, p. 423.
12 AMADO, Jorge. Tocaia Grande: a face obscura. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 425. 13 AMADO, Jorge. Tereza Batista cansada de guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 62. 14 RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 139.
15 GERSÃO, Teolinda. A cidade de Ulisses. 2. ed. Lisboa: Sextante, 2011, p. 66.
16 Para Alain de Botton, “a premissa para se acreditar na importância da arquitetura é a noção de que somos, queiramos ou não, pessoas diferentes em lugares diferentes – e a convicção de que cabe à arquitetura deixar bem claro para nós quem poderíamos idealmente ser” (BOTTON, Alain. A arquitetura da felicidade. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 13).
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